Artigo de Opinião para a Revista Millioneyes, Outubro 2023
Corporate Governance – na era post 25 de Abril*
No rescaldo da onda de reprivatizações da década de 90 assistimos no nosso País:
1. À busca de modelos de gestão empresarial muito dependentes do novo xadrez acionista e carga pretérita de presença do Estado enquanto acionista, regulador e legislador.
2. À difícil dialética entre o renascimento de grupos empresariais pré-revolução com descapitalização estrutural e a meta de maximização de encaixe na alienação de ativos, acrescida pela muito discutível estratégia das privatizações.
3. Ao surgimento de novos grupos empresariais sem matriz estratégica que ultrapassasse o foco sectorial do seu surgimento – distribuição, banca e indústria convencional em tentativa de relançamento com mudança do paradigma.
4. À busca de equilíbrios quase impossíveis entre o esforço de criação ou manutenção de grupos de raiz nacional com ênfase na manutenção de centros de decisão radicados em Portugal e a necessária internacionalização e gradual integração europeia da economia portuguesa (com uma força centrífuga ibérica). Isto sem um pacto do regime (ao invés do sucedido na Espanha) a favorecer a constituição de grupos (via nomeadamente fusões) com dimensão suficiente para se lançarem nessa internacionalização e racionalizar uma eventual estratégia para a economia portuguesa.
A construção de grandes equívocos com a extensão da “génese perversa” financeira a outros sectores – cimento, construção, energia, telecomunicações sem o cuidado de acautelar a possível contaminação do sector financeiro gerou como resultado a terrível perda de valor do mesmo e sua profunda desnacionalização.
Claramente neste contexto criaram-se soluções como a blindagem de estatutos, restrições nas regras de participação nas privatizações, estruturas de cruzamento de interesses que acabariam por suscitar perplexidade em sede de Corporate Governance (como se viu até recentemente).
A deriva inconsistente de internacionalização, em particular no universo da lusofonia, deixaria ainda mais claro o quanto a Governance era um instrumento propiciador de mecanismos de controle que, no limite, estavam alicerçados numa espiral de alavancagem que num contexto adverso seria claramente posta em causa (v.g. PT).
Sucessivos governos foram, através da política de privatizações e utilização do sistema financeiro, em particular da Caixa Geral de Depósitos, incentivadores de um quadro completamente artificial de estrutura empresarial nacional.
* Com excertos de textos publicados em edições do IPCG
A crise de 2007 veio internacionalmente abrir um debate sobre a Governance colocando a ênfase da mesma em quatro tópicos que creio dominarão os parâmetros balizadores da temática:
Na gestão de risco a imperatividade de ter políticas e controle independente com modelos de risco revisitados em particular para eventos imprevisíveis e produtos estruturados tornou-se inquestionável.
No funcionamento dos órgãos de administração e fiscalização desenvolveu-se toda uma modelagem que tentasse criar mecanismos de “checks and balances” com margem de mitigação de conflitos e moderação de poderes.
Equacionar estruturas sem ponderar os sistemas remuneratórios subjacentes seria uma temeridade. Daí todo um debate em torno da compensação face ao desempenho desejavelmente avaliado a curto e médio prazos, ao escrutínio desse desempenho, aos conflitos que suscitam entre os interesses nem sempre convergentes, ao papel ainda muito incipiente dos não executivos em particular independentes à indispensável transparência que a tudo deve presidir.
Vimos o colapso dos sistemas financeiros britânico, irlandês, grego e português e as medidas contemporizadoras para evitar o colapso nos sistemas americano, holandês, francês e alemão/austríaco para não mencionar os nórdicos, a Espanha e a Itália.
Se nos perguntarmos o que está subjacente a tais fenómenos, para além de motivos macroeconómicos, não conseguiremos evitar a denuncia de uma total subversão de princípios substantivos de Corporate Governance aliados à omissão e incapacidade dos legisladores e dos Reguladores/Fiscalizadores com a natural cumplicidade de agentes com as rating agencies, auditoras e consultores jurídicos que expressa ou implicitamente acabaram por compactuar com o que se antecipava.
Ficamos assim com este quarto tópico que tem um lastro mais profundo e que diz respeito às funções objetivo da empresa – maximização da riqueza acionista versus equilíbrio dos interesses dos stakeholders.
Nessa difícil equação tem a doutrina defendido teses diversas colocando a tónicaossa numa ou noutra vertente.
Hoje urge ser gradualmente consensual aceitar a maximização do valor da empresa por meio da apropriada gestão das relações com os stakeholders, permitindo uma abertura para a cooperação, ao invés da competição. A corporate governance é concretizada por compromissos celebrados entre, principalmente, a gestão, os accionistas e os stakeholders, em negociações que podem e devem gerar relações de equilíbrio ou desequilíbrio.
Será o compromisso entre essas duas visões – defesa da maximização do valor da empresa para os acionistas e defesa dos múltiplos interesses dos stakeholders numa logica de responsabilidade social que se conseguirá vislumbrar um quadro responsável do exercício da Corporate Governance num horizonte de sustentabilidade – uma realidade que não seja um exercício de mera compliance formalística, mas de uma adesão a uma substancialidade que torna o desempenho sustentável e responsável.
Porém, os desafios que se deparam e o papel que o IPCG deve agora liderar serão no contexto mais alargado da temática do ESG.
Na última década questões ambientais e sociais a par das sociais, sempre numa ótica de sustentabilidade, entraram na equação dos elementos valorizados nas análises de risco e nas decisões de investimento condicionando o universo empresarial no desenho dos seus modelos de governo societário.
A resiliência das empresas no atual contexto de volatilidade sistémica deverá estar sustentada na consolidação daquelas variáveis obedecidos critérios de ESG.
Diferentes guidelines têm surgido para tentar monitorar seja a “visibilidade” dos riscos seja a chamada “consciência social” da empresa.
Tornou-se imperativo consolidar uma visão holística e prospetiva no modelo de governo societário indo ao encontro deste novo contexto operativo ele próprio evolutivo.
Estes os desafios a par dos já pré-existentes de políticas inclusivas e não discriminatórias, a qualquer título, género, idade, incapacitação, raça etc…
ESG não é apenas um tema das empresas cotadas ou de grande dimensão. O universo das PME’s que é dominante no tecido empresarial português deve igualmente estar atento a esta realidade incontornável.
É, pois, algo transversal que a AASO valoriza desde a primeira hora.