Artigo de Opinião para a Revista ÓpticaPro nº244, Setembro 2023
A Equação da Ecoansiedade
O Pacto Ecológico Europeu estabelece para todos os Estados-Membros, 2050 como uma meta ambiciosa para a neutralidade climática. Ciente do grande desafio que desponta pela frente, a Comissão Europeia criou diferentes mecanismos, desde pacotes legislativos concretos à mobilização de fundos, um bilião de euros em investimento público e privado, para conseguir chegar àquele objetivo. O Acordo Verde Europeu ou Pacto Ecológico Europeu foi apresentado em 2019 e abrange áreas como a energia limpa, o transporte sustentável, a eficiência energética, a agricultura e a proteção da biodiversidade. Alguns dos objetivos do Pacto Ecológico Europeu relacionam-se com a redução do efeito de estufa, a promoção das energias renováveis, a eficiência energética em edifícios, o combate à poluição e o desenvolvimento da economia circular. Sem ser exigível uma leitura atenta, compreende-se de imediato que não bastam ideias, ou mesmo a boa vontade ambientalista, para alcançar a neutralidade climática. Será imprescindível um sprint à velocidade máxima, a par de uma regulação legislativa vinculativa de todos os estados-membros. O pacote Objetivo 55 visa adaptar e regular a legislação da União Europeia em matérias de clima, energia, transportes e fiscalidade. Esta parametrização tem como propósito a redução de emissões líquidas de gazes com efeito de estufa, em pelo menos 55%, até 2030. Com um quadro legislativo apropriado, metas claras e mensuráveis, facilmente os governos forçarão as empresas a adaptar as suas atividades para o cumprimento dos regulamentos. Se, numa primeira fase da implementação os principais alvos são as organizações, inevitavelmente, seguir-se-ão normas que no futuro obriguem os consumidores a mudar radicalmente muito dos hábitos de consumo, de mobilidade e lazer.
Na última década, o desempenho global das economias obrigou a políticas acrobáticas reformativas nos países desenvolvidos, empurrados pelo peso crescente da importância geoestratégica da Ásia, em particular o da China. A ascensão da China como uma potência económica, tem vindo a gerar uma nova ordem, descentralizando dos Estados Unidos o eixo da produção industrial e do comércio internacional. Este braço de ferro tem vindo a assumir várias formas, desde restrições à importação de tecnologia até ao episódio mais recente das disputas territoriais no mar do Sul da China, assim como, o apoio expresso dos EUA à autonomia de Taiwan.
Supunha-se uma maior convergência dos países emergentes na direção das economias mais ricas, contudo, esta trajetória foi amplamente contrariada. A desaceleração económica que se verificou a partir do segundo decénio do século XXI, em média superior aos períodos homólogos anteriores, atingiu o seu topo com a crise pandémica e, mais recentemente, com a guerra na Ucrânia. Acresce, a exposição à maior crise energética a que o mundo foi sujeito, provavelmente nos últimos 100 anos. O resultado deste conjunto de acontecimentos são a subida descontrolada da inflação e, da parte dos bancos centrais, uma política monetária muito restritiva colocando as taxas de juros de referência no valor mais elevado dos últimos anos. As consequências na sociedade desta dinâmica financeira são devastadoras, não se podendo afirmar que afete unicamente as populações de baixa renda. Somente o futuro mostrará se a estratégia adotada pelos governos e bancos centrais para controlar a pressão inflacionista será, ou não, adequada. Entretanto, consequência da perda do poder de compra, assistimos a uma crise social generalizada, ao aumento da pobreza, especialmente numa determinada faixa da população. Proliferam os protestos e as manifestações contra o custo de vida, os salários desajustados e o direito a uma habitação digna.
Quantos fatores de instabilidade indutores da perceção de insegurança pendem hoje sobre os ombros da sociedade? Os jovens recém-formados enfrentam inúmeras dificuldades quando ingressam no mercado de trabalho. Ultrapassado o obstáculo de um mercado de trabalho com uma oferta escassa, as qualificações académicas acabam por não corresponder à oferta disponível e os salários baixos são castradores do desenvolvimento pessoal e social. Hipoteca-se a manutenção do talento jovem, com uma política queimada de meritocracia e de reconhecimento justo do trabalho.
A sociedade está em profunda transformação. Os últimos 50 anos, foram marcados pelo conhecimento, pela inovação e tecnologia, e transformaram o modo como pensamos e como agimos. Veja-se o fenómeno da dinâmica da mobilidade territorial das populações e a democratização dos transportes, com especial destaque para o uso privado do automóvel, que para além de indicador do estatuto social é um sinal de autonomia. A redimensionalidade dos espaços urbanos, o alargamento dos interesses individuais, ponto a ponto na geografia global, a maior confiança atribuída à segurança que a tecnologia proporciona e o maior poder de compra, conduziram à procura generalizada dos transportes aéreos. Com efeito, o produto decorrente da massiva utilização destes meios de transporte é responsável pela pressão no ambiente através do aumento exponencial da poluição atmosférica e o comprometimento dos ecossistemas.
Hoje, conceitos como os da consciência social e ambiental, não são estranhos e encontram-se disseminados no dia a dia das pessoas. Uma consciência ambiental desenvolvida é capital para que os indivíduos, as comunidades e as sociedades adotem práticas que contribuam para a neutralidade carbónica. A sustentabilidade ganhou tamanha importância que já condiciona as relações comerciais entre as organizações. O escrutínio nas cadeias de abastecimentos das marcas ocidentais passou a ser uma prioridade, tal como a transparência dos processos visando o respeito e o cumprimento de valores humanos, a erradicação do trabalho infantil, a inclusão entre outros. Vários estudos demonstram que os consumidores direcionam as suas opções de compra para os produtos que, na sua origem, revelem respeitar os princípios da ESG. Caminhando pelos corredores de um supermercado, observamos inúmeras embalagens que nos seus rótulos certificam a origem responsável dos seus produtos. As decisões de compra deixaram de ser exclusivamente influenciadas pelo nível de notoriedade da marca. Hoje, olha-se mais para as etiquetas, procurando descortinar os prazos de validade, a composição e a origem do artigo, sem esquecer as políticas sociais do fabricante. Porém, nem sempre o argumento da escolha de uma marca amiga do ambiente corresponde realmente à verdade. Muitas empresas advogam políticas de ESG, mas, fazem apenas operações de maquilhagem que constituem verdadeiras campanhas de marketing, a que hoje chamam greenwashing. A Mckinsey apresentou os resultados de um estudo de tendências de consumo nos EUA, aonde 60% dos entrevistados responderam que pagariam mais por um produto com embalagem sustentável. Os custos de produção e certificação são altos e atualmente agravados com o impacto adicional da inflação. Por essa razão, no momento de decisão da compra, nem sempre o esforço dos operadores é correspondido. Com certeza que ponderada a decisão, a consciência de muitos consumidores fica-se por entre a intenção conceptual da promoção de uma economia verde e a realidade das limitações de algibeira.
Um amigo foi recentemente confrontado com a necessidade de substituir o veículo automóvel. Provavelmente mais rendido à tecnologia, à modernidade e ao controlo de custos do que propriamente, ao genuíno interesse das políticas de carbono 0%, decidiu adquirir um veículo elétrico. No orçamento da maioria das famílias, o automóvel, depois da aquisição de casa própria, é a compra de maior expressão. Talvez isso explique o ritual que habitualmente se segue a esse ato, uma espécie de troféu social, o passeio da ordem com toda a família, neste caso, pelas margens do Douro. Resumindo, por inexperiência ou por falta de habilidade, este amigo, inadvertidamente, deixou o indicador de potência descer abaixo da reserva, o que o levou a parar nas imediações. O episódio que se seguiu, entre procurar um posto de abastecimento compatível, chamar o reboque e chegar ao destino 9 horas após o previsto, demonstra simplesmente como ainda não estamos preparados para o desafio da sustentabilidade. Independentemente dos discursos fluídos sobre a neutralidade carbónica para 2050, encontramos no dia a dia incalculáveis barreiras à implementação de boas práticas ambientais.
Cientistas como Václav Smil, analista político tcheco-canadense, professor emérito na Faculdade de Meio Ambiente da Universidade de Manitoba no Canadá, levanta algumas dúvidas sobre a rapidez no processo de transição para uma economia verde. É verdade que é uma corrida contra o tempo e que de uma maneira ou de outra, todos sentimos o choque das mudanças climáticas e, ninguém, poderá ficar verdadeiramente indiferente a esta catástrofe. Concomitantemente, da parte das autoridades, por vezes encontramos decisões irrealistas tendo em conta que a sociedade ainda se encontra muito dependente das energias fósseis. O conflito entre a Rússia e a Ucrânia levou a que alguns países da UE recuassem nas conquistas alcançadas da economia verde, recorrendo novamente ao combustível sujo e às centrais elétricas movidas a carvão. A substituição das infraestruturas como as centrais de carvão, as refinarias e as redes de distribuição, teriam um custo incalculável. Não menciono apenas o custo material da transição para uma economia limpa, evidencio, o impacto social e humano nas comunidades dependentes da energia fóssil, quando o que se pretende, é uma transição energética inclusiva e equitativa para todos. Apesar do avanço no desenvolvimento e produção das energias renováveis, continuamos muito dependentes das energias fósseis. O seu colapso, ou mesmo a descontinuidade abrupta, resultaria na calamidade transversal da sociedade, tendo em conta o modelo de desenvolvimento económico que adotamos.
Não é um mistério que o plástico seja um derivado do petróleo, um dos recursos naturais mais importantes, ainda que dos mais tóxicos para vida na terra. O plástico é uma invenção do século XX que se tornou fundamental para a manutenção das atividades humanas, na saúde, na construção, nos transportes, na indústria alimentar e na indústria automóvel. Está presente em todas as áreas da sociedade. A sua relevância pode ser evidenciada em dois episódios da história da humanidade. O primeiro, diz respeito ao vírus da imunodeficiência humana, cujo desconhecimento da comunidade científica levou a que estrategicamente se recomendassem medidas preventivas, através do uso universal do preservativo. O segundo, mais recente, diz respeito ao vírus SARS-COV-2 em que a solução, igualmente preventiva, foi a utilização generalizada de máscaras e a vacinação. Em ambos é visível o uso de materiais plásticos que tendo em conta uma estimativa vaga, falamos de biliões de preservativos, máscaras e seringas descartáveis. Será possível imaginar o que seria das populações se não existisse o plástico?
Citando a Organização Mundial de Saúde, estima-se (considero uma estimativa otimista), que cerca de 300 biliões de pessoas sofram de problemas de visão, das quais, praticamente 50% destas, por defeitos de refração. A IAPB (International Agency for the Prevention of Blindness) evidencia na sua estratégia Visão 2030 que, ao ritmo de crescimento da miopia, prevê-se que em 2050 metade da população mundial venha a ser míope. A esta metade acrescentemos um outro grupo de ametropes, os hipermétropes, os astigmatas e os presbíopes. A ciência e o conhecimento aumentaram o empoderamento económico e a facilitação no acesso aos cuidados básicos. A medicina contribuiu para o aumento da esperança média de vida e, o crescente número das populações seniores (de acordo com o Censos 2021, em Portugal representam 23% do total da população), está a transformar as políticas de emprego tornando-as mais inclusivas. A prevalência da presbiopia encontra nos óculos que a compensam um elemento fundamental para uma maior eficiência e rendimento no trabalho. Estima-se que o número de seres humanos no planeta terra tenha ultrapassado os 8 bilhões e, ao ritmo dos avanços na ciência e dos cuidados de saúde, não parece que essa tendência se inverta, embora se admita algum abrandamento. Os utilizadores de óculos também encontram nas lentes de contacto uma alternativa para a correção dos erros refrativos. De acordo com algumas projeções, 2% da população mundial escolhe este meio para corrigir a visão, sem que com isto, elimine a possibilidade de simultaneamente possuírem um ou dois pares de óculos. Os benefícios sobejamente conhecidos para a saúde ocular e o conforto visual, massificaram o uso de óculos. A Marktest, num estudo de mercado em 2020, apurou que 55% da população portuguesa, cerca de 4, 5 milhões eram utilizadores de óculos de sol e, admito eu, muitos destes, possuam mais do que um par. Num exercício meramente especulativo e certamente otimista, no mundo, existem 3 biliões de óculos de sol a uso. Façamos ainda este outro simples exercício: cada um destes meios, os óculos de correção, os de sol e as lentes de contacto obrigam a um ritual diário para a sua manutenção. Juntam-se a eles biliões de estojos e demais acessórios. Poderemos continuar a especular e admitir que, no universo das lentes oftálmicas e solares, se possa facilmente chegar aos 8 ou 10 biliões?
A grande maioria dos materiais utilizados na indústria da ótica são derivados do petróleo, produzidos a partir de polímeros sintéticos. Ainda é residual a utilização de materiais sustentáveis como os bioacetatos, feitos a partir de fibras de algodão e polpa de madeira, ou de materiais reciclados provenientes de garrafas de plástico e pranchas de skate usadas. Excluindo a quantidade de resíduos oriundos da específica produção de cada unidade, lente ou componentes da armação, o consumo no setor da ótica tem vindo a crescer sem se ter estabelecido o equilíbrio na cadeia, ajudando a que muito facilmente percamos o rasto dos produtos do seu fim de vida útil. Ainda que desejável, não parece ser plausível reduzir o ciclo de produção de armações e lentes. A saúde visual reveste-se de crítica importância na aprendizagem, na produtividade e no desempenho da vida quotidiana. Existe uma relação estreita entre um bom desempenho académico, profissional e o equilíbrio da saúde mental. Os humanos são animais sociais e a felicidade, um alvo prioritário nas nossas vidas, depende da integração em comunidade aonde o trabalho assume uma relevância central.
A AASO nasce no seio de um grupo de pessoas com preocupações humanistas e sensíveis à causa da sustentabilidade. Ainda que nem todos estivessem ligados à ótica, rapidamente compreenderam os princípios orientadores da associação. Num universo cuja matéria-prima é consistentemente o plástico, encontrar soluções práticas que contribuam para a transformação do impacto ambiental do setor, para além de um grande desafio, traduz, objetivamente, a vontade de melhorar o mundo. Impedir a produção industrial para servir de uma forma continuada as necessidades de saúde visual das populações não é realista. Podemos, todavia, a montante, apresentar inúmeras possibilidades para alterar a realidade aterradora dos resíduos do nosso ecossistema. Cultivar a informação junto aos consumidores finais, promovendo-os de recetáculos passivos de óculos e lentes de contacto, a utilizadores ativos no circuito seletivo dos resíduos. Sem comprometer a sustentação económica do negócio, direcionar as compras para produtos mais ecológicos, os bioacetatos e os materiais orgânicos. Defender junto dos nossos parceiros comerciais, políticas mais sustentáveis de difusão de material de merchandising, montras ambulatórias e sistematização de entregas de mercadoria entre muitas outras boas práticas. Somos todos cúmplices nesta hemorragia jugular do planeta terra e o custo para a estancar, implica o compromisso absoluto, individual e coletivo. A AASO está a desenvolver no âmbito da Economia Circular um programa de recolha de resíduos ao longo do país, a implementar ainda em 2023, a que chamará de Circuito de Recolha de Resíduos-CRR. Acreditamos que um dos nossos papéis mais importantes na sustentabilidade ambiental, consiste em controlar o circuito dos resíduos da ótica, na perspetiva de coletores finais e apontando-lhes três últimos destinos: a recuperação do que é recuperável e a introdução em projetos sociais, como é o caso das armações; o encaminhamento para processos de reciclagem; o encaminhamento para a incineração.
No tempo em que nos encontramos e até atingirmos a meta ambiciosa de 55% na redução de gazes com efeito de estufa em 2030, tudo terá que ser feito. Não basta que as organizações internacionais ou os governos produzam mecanismos legais para normalizar as atividades económicas no contexto das políticas ambientais. Está na consciência dos indivíduos a espoleta para que esta batalha seja bem sucedida e que produto da equação da ecoansiedade se traduza num futuro melhor para os nossos filhos.