Artigo de Opinião, Revista Millioneyes Setembro 2025
Rui Motty
Presidente da Associação de Apoio à Sustentabilidade da Ótica (AASO)
CEO Optocentro, Lda
Vice-Presidente da Camara de Comercio Portugal Moçambique (CCPM)
É quase como procurar o Wally: intrigante, frustrante, mas sempre desafiante. A narrativa em torno da escassez de talento no setor da ótica ocular tem sido, no mínimo, mal contada. É verdade que enfrentamos uma crise de mão de obra especializada à escala global, mas é igualmente verdade que o nosso setor, com toda a sua riqueza multidisciplinar, deveria destacar-se como uma escolha de excelência para os jovens em busca de propósito e desenvolvimento profissional.
Na ótica, cruzam-se saberes e práticas: saúde visual, tecnologia de ponta, inovação permanente, estética e moda. E ainda há espaço para muito mais, como as competências relacionais e o conhecimento do comportamento humano, que são continuamente postos à prova no contacto direto com os clientes. Com esta visão, arrisco dizer: estamos a perder uma grande oportunidade. Num tempo em que tantos setores lutam por atratividade, o nosso deveria estar melhor posicionado, não apenas como saída profissional, mas como um caminho de futuro. A escassez de talento, se não for invertida, impactará inevitavelmente o desempenho económico das empresas e, por arrasto, a sustentabilidade de todo o setor.
A pandemia ficou marcada como um ponto de rutura, um agente disruptivo que expôs fragilidades estruturais e acelerou mudanças sistémicas na ordem global. No período pós-pandemia, ou d.P. (num paralelismo assumidamente abusivo com as referências históricas a.C. e d.C.), emergiu com força o debate generalizado em torno da saúde mental e das suas várias expressões multigeracionais. Com particular ênfase na geração Z, o tempo passou a ser percebido como um bem intangível de alto valor, cada vez mais integrado no conceito de “pacote salarial”. A valorização do tempo livre, da flexibilidade e do equilíbrio vida-trabalho tornou-se central na escolha de um emprego. Paradoxalmente, a montante, assistimos ao aumento na procura de experiências tangíveis, viagens, gastronomia de autor ou eventos culturais que, inevitavelmente, exigem uma remuneração materialmente significativa. Esta equação entre tempo e rendimento está, porém, profundamente desajustada. E esse desajuste é perigoso, não só do ponto de vista do empregador, que enfrenta dificuldades em atrair e reter talento, mas também para o próprio candidato, que ignora por vezes os compromissos necessários à sustentabilidade do estilo de vida que ambiciona. Descontextualizar esta tensão da lógica contemporânea em que o consumidor é mais exigente e o mercado mais competitivo, é ignorar a complexidade dos novos paradigmas laborais e sociais. Encontrar um equilíbrio justo e realista entre tempo e remuneração é, hoje, um dos grandes desafios da economia e da gestão de talentos.
Um breve olhar sobre o setor, com atenção ao papel dos empresários e das associações ao longo das últimas décadas, revela uma grande disparidade na divulgação das diversas carreiras profissionais. Ao contrário da promoção consistente da educação em Optometria, a valorização das carreiras de vendedor/consultor e de técnico de ótica ocular ficou muito aquém do desejável. Apesar de tudo compreensível, tendo em conta que o foco do impasse na regulamentação, tanto no que diz respeito à abertura de estabelecimentos como ao exercício da optometria, tenha recaído sobre a figura do óptico-optometrista. No entanto, é fundamental reconhecer que os restantes profissionais continuam a ser peças essenciais para o bom funcionamento das óticas. As associações, tanto profissionais como empresariais, não conseguiram criar mecanismos eficazes de atração de novos talentos para estas categorias profissionais, justamente num período em que as grandes cadeias se expandiam e absorviam a maioria dos técnicos disponíveis. Naturalmente, o processo de recrutamento tornou-se hoje extremamente desafiante, mesmo sem considerar os entraves associados às expetativas dos candidatos, pacotes salariais e a gestão dos horários.
Faltou visão estratégica e planeamento em muitas das direções que lideraram o setor. As associações empresariais deixaram-se ultrapassar pelos grupos económicos, que assumiram, na prática, o papel de motor da formação, garantindo internamente a qualificação dos seus quadros. É fundamental entender que a aposta na requalificação dos profissionais em exercício, embora necessária, não pode ser a única solução. É igualmente urgente atrair sangue novo para o setor, que ao ritmo das caraterísticas demográficas da população portuguesa, o envelhecimento avança a passos largos. Com a debanda para reforma da geração baby boomer, não se verifica uma entrada proporcional de novos profissionais. Campanhas de sensibilização nas escolas, presença ativa em feiras de emprego e orientação vocacional, bem como uma colaboração estreita com instituições de ensino, devem fazer parte de uma estratégia concertada de revitalização do setor.
Podem antecipar-se dois cenários relevantes para o futuro. A curto prazo, é expectável uma intensificação da lógica de cooptação, assente na valorização crescente de fatores como a inclusão e a diversidade, com uma forte dependência de mão de obra estrangeira, em particular provenientes do Brasil, para colmatar a escassez de recursos humanos disponíveis. A médio prazo, após o ciclo de conquista agressiva de quotas de mercado e num contexto de saturação competitiva, é plausível prever o desinvestimento progressivo por parte dos grandes grupos, acompanhado pela libertação de técnicos e outros profissionais, até aqui absorvidos por essas estruturas.
A acreditação do setor deverá ser alicerçada na captação de talento jovem, na capacitação dos recursos humanos, na proposta de programas credenciados de educação contínua, no reforço da autonomia e responsabilidade, para além de um pacote salarial verdadeiramente estimulante. Enquanto a robotização não chega ao setor, continuaremos à procura do Wally…